terça-feira, 8 de dezembro de 2020

Análise crítica: O último Faraó

 



Obra: O último Faraó
Título original: Blake et Mortimet – Le dernier Pharaó
Argumento: Jaco Van Dormael; Thomas Gunzig; François Schuiten
Desenho: François Schuiten
Cor: Laurent Durieux
Editora: Asa
Edição: março de 2020
92 páginas – 85 com banda desenhada
ISBN: 978-989-23-4698-4
Preço: 10, 90 €
Dimensões: 202 mm x 288 mm

 

Análise

Este álbum não pretende ser parte da série Blake e Mortimer. É assumidamente um extra que não se enquadra, designadamente quanto ao trabalho de desenho, no estilo que segue o traço de Jacobs.

Schuiten, num estilo totalmente distinto de Jacobs e dos seus continuadores, recria as duas personagens. Foge ao grafismo em que os rostos se aproximam de um modelo semicaricatural, para usar um desenho de traço realista. Blake e Mortimer surgem mais velhos, mas apesar da mudança de estilo, os traços fisionómicos permitem identificar sem dificuldade as duas personagens.

Os rostos das personagens parecem muitas vezes sofrer de paralisia, pois as emoções não se manifestam. Os rostos mantêm-se inalterados em muitas situações que justificavam diferentes expressões. Schuiten não é um desenhador de pessoas,  embora em Cidades Obscuras tenha conseguido dar uma diversidade de expressões faciais nos seus personagens, que não se verifica neste álbum. Schuiten é um desenhador de prédios e cidades e essa é mais-valia desta obra. Nos cenários das diferentes vinhetas é o desenho dos prédios, dos seus interiores e exteriores que se evidencia. Sempre que possível Schuiten recorre à arquitetura para embelezar o fundo da vinheta e define bem as suas dimensões sempre que os prédios e outras construções arquitetónicas têm que ser desenhadas.

Apesar de os rostos não contribuírem para elevar a qualidade do álbum, os grandes planos evidenciam esta parte da anatomia humana. Ao desfolhamos as páginas são os rostos que marcam as vinhetas. São eles que nos enfrentam no virar das páginas, contando a história. Não se percebe se foi essa a intenção do desenhador, mas foi esse o resultado do trabalho realizado.

Excetuando as situações em que há a intenção de mostrar elementos arquitetónicos e urbanísticos, fazendo uso de vinhetas maiores, não há criatividade no uso das mesmas e na alteração das suas características clássicas para a construção do fluir narrativo. Não somos surpreendidos com uma vinheta ou um conjunto de vinhetas que nos faça parar a leitura.

A profundidade das cenas é conseguida de modo muito efetivo. Para isso contribui um bom uso da sombra, que permite identificar imediatamente os diversos planos que podem surgir nas vinheta e as posições relativas dos vários objetos e personagens. Schuiten domina bem esta área do grafismo.

As molduras e as características da letra usadas nos balões servem, por vezes, para demonstrar várias emoções ou para sublinhar o tom de voz usado. Ainda no que se refere ao uso dos balões, são usados no seu interior, algumas vezes, o ponto de interrogação e o ponto de exclamação, com o objetivo de mostrar o espanto das personagens.  Nota-se neste uso dos balões o domínio e o uso das técnicas de comunicação em banda desenhada.

Ainda no que se refere à simbologia própria da banda desenhada verifica-se a utilização de símbolos cinéticos, de forma moderada, e de onomatopeias, estas em número reduzido, mas aplicadas de forma coerente.

As vinhetas possuem balões e legendas. Estas últimas são essenciais para compreender a narrativa. Só os balões não conseguem expressar a história. Não estamos perante a continuação do estilo Jacobs, mas mesmo assim, a obra está bem guarnecida de legendas. As vinhetas  que não têm balões, nem legendas ou onomatopeias são em número muito reduzido, sendo evidente que não é objetivo dos autores utilizarem este tipo de narrativa silenciosa, o que também já acontecia com Jacobs e com os autores que o seguiram na sequência principal de Blake e Mortimer.

O argumento é o ponto fraco deste episódio. Atribuído a três autores, é mal conseguido. Talvez a diversidade autoral possa ser uma das razões. Cada um pretendeu deixar a sua marca e nota-se a falta uma linha segura na narrativa, havendo várias distrações da via principal da história que se pretende contar.

O argumento vai buscar as suas origens a O mistério da Grande Pirâmide, o episódio da série Blake e Mortimer que mais usa e abusa do esoterismo, que acaba transportado para o presente episódio, não combinando bem com a ficção científica em que se pretende centrar o argumento. Esoterismo e ciência são duas palavras que não cabem na mesma abordagem. Embora Blake e Mortimer seja uma série de ficção científica, se os autores tivessem optado por seguir a linha esotérica nada haveria opor, tanto mais que se está fora da série principal, mas a mistura acaba por tornar o argumento difícil de entender, não se percebendo onde acabam as manifestações esotéricas e onde começa a especulação científica.

A remissão a álbuns publicados na série Blake e Mortimer fica reservada a O Mistério da Grande Pirâmide e ao xeque Abdel Razek. Desta vez o sempre omnipresente Olrik não surge na história. Talvez os argumentistas tenham decidido que ele morreu na explosão final de As 3 fórmulas do professor Sato.

Com tantos autores no argumento há, no entanto, pormenores que não estão resolvidos. É completamente incompreensível como é que Henri conseguiu sobreviver dentro do prédio, fechado, até a parede se ter aberto pela primeira vez, depois de ter ficado prisioneiro.

A radiação está muito mal explicada. Como é que uma radiação desconhecida (desconhecida em que aspeto?) é confinada tão facilmente. Também não é explicada de forma clara aquela emissão clara em forma de feixe paralelo, tipo laser. Se a radiação interage com a ionosfera da forma como é descrita, então que sucederia aos humanos que a ela estiveram sujeitos? Aparentemente nada, o que é muito estranho.

A ficção científica tem que ser especulativa, mas deve obedecer à ciência já conhecida na época em que decorre a ação. Neste argumento surgem algumas falhas nessa área.

Uma outra falha do argumento reside na dificuldade de localização temporal do episódio. Consegue perceber-se, pela imagem em que se mostra a falha nos computadores em Londres, que os monitores usados colocam o desenlace entre a segunda metade dos anos 90 e, talvez, os primeiros anos do século XXI. Não há, no entanto, nenhuma forma de localizar o incidente inicial, embora pelos automóveis que surgem na imagem, parece que terá que ser já década de sessenta ou posterior. Com tanta informação escrita que é dada, a localização temporal não deixaria de ser relevante.

O próprio ar juvenil da filha do xeque não é facilmente compatibilizado com o tempo decorrido desde a data de O Mistério da Grande Pirâmide, a idade que o xeque parece ter, e a época em que decorre o desenlace da atual ação narrativa.

Outro aspeto inexplicável é a tentativa de fazer explodir o comboio. Quem e porquê? Aparentemente os habitantes de Bruxelas não pareciam querer acabar com a situação em que viviam.

Também por que razão se passaram tantos anos até que se tenha decidido proceder a um ataque decisivo?

São muitas as interrogações que mereciam resposta, e que deixam o argumento incompleto.

Conclusão

O episódio pode mostrar algum interesse para os admiradores da série Blake e Mortimer. Não porque tenha uma qualidade elevada, designadamente no argumento, mas pela curiosidade de ver um desenhador como Schuiten a trabalhar a série.

Para um iniciado em Blake e Mortimer não é apelativo. Até pode ser incompreensível pelas relações que estabelece com o Mistério da Grande Pirâmide.

Sem comentários:

Enviar um comentário