quarta-feira, 25 de novembro de 2020

Análise crítica: O sopro de Moloch

 

Obra: O grito de Moloch

Título original: Blake et Mortimer 27 - Le cri du Moloch

Argumento: Jean Dufaux

Desenhos: Chistian Cailleaux e Éttienee Schréder

Cor: Laurence Croix

Edição Cartonada

Editora: Asa

Ano 2020

56 páginas- 54 contendo o episódio.

Dimensões: 309 mm x 236 mmm

ISNN: 978-989-23-4957-2

PVP : 15,90 €

Há uma edição limitada com capa especial e outro ISBN

 


Análise:

Este álbum deve ser entendido como uma continuidade de “A Onda Septimus”, pois usa as personagens e o ambiente cénico e social desse episódio, embora possa ser lido também de modo autónomo, ficando, nessa situação, por compreender alguns elementos da narrativa. Considerando que “ A Onda Septimus” já surgia na sequência de “ A Marca Amarela”, estamos perante um conjunto que une estes três episódios. Para uma melhor compreensão de todos os factos narrados, também será importante ler “O mistério da Grande Pirâmide” que também é  referido no episódio agora em análise.

O argumento, que normalmente é o fator que marca o sucesso ou insucesso de uma banda desenhada, a não ser que se esteja perante um desenho horrível, é um dos aspetos mais negativos deste episódio.

Começa pelo recurso ao esoterismo. Este foi um dos aspetos ficcionais que Jacobs usou em “ O Mistério da Grande Pirâmide”, e posteriormente como solução para resolver o enredo de “A Marca Amarela”; mas, depois, abandonou-o. E provavelmente tê-lo-á feito porque a ficção científica e o espírito analítico de um cientista não são compatíveis com “palavras mágicas”.  Na fase Blake e Mortimer, posterior à morte do seu criador, houve mais alguns argumentistas que recorreram a este efeito, mas, na verdade, apenas estiveram a tirar valor a uma série, que no campo da ficção científica marca pontos, e que os perde quando entra nesta área ficcional. O episódio fica com mais características para ir para uma das revistas típicas dos anos 70 e 80 sobre esta temática: “ Creepy” ou as portuguesas “Terror” e “Zakarella” do que para fazer parte de uma série de ficção científica, que tem de abordar assuntos de ciência, sejam eles reais ou imaginados.

Como série esotérica este episódio convence, do ponto de vista da ficção científica, mesmo esquecendo as incompatibilidades entre esoterismo e ciência, é medíocre.

Na sua globalidade o argumento é uma “boa ideia”, mas como acontece quase sempre que se utiliza esta qualificação, significa que se está perante algo que falhou.

Falhou no que se refere ao contexto esotérico e falhou em várias partes pouco desenvolvidas ou não explicadas. Não se explica como ocorre a incorporação. Por um lado é física mas parece ocorrer numa perspetiva psicológica, havendo aqui contradições. Uma das vinhetas parece mostrar a destruição física do hospedeiro, quando surge uma língua “anormal” na boca do incorporado, com o risco de sufocação, mas, no entanto, não há qualquer notícia de destruição de órgãos quando o cadáver do corpo ocupado aparece.

Também a partida dos extraterrestres merecia melhor explicação. Demasiado fácil para ser aceite. A razão da atitude de Orfeu não é explicada. Qual a razão para destruir a civilização humana? Mata só porque quer matar?

Ainda em relação ao argumento, uma última crítica. Voltar sete anos mais tarde à continuação de um episódio, quando já foram publicados mais quatro volumes de três episódios diferentes, apesar das pontas soltas deixadas por “A Onda Septimus”, é muito tempo decorrido e a edição fica desadequada. Justificava-se esta publicação se houvesse uma qualidade extraordinária na continuação, o que não é o caso.

O número de vinhetas por página, embora superior ao do episódio “A Onda Septimus”, que teve uma média de 9,5 vinhetas por página, fica na média da série, 10,7 por página.  Nesta perspetiva é no um episódio que se enquadra no espirito da série, com um elevado número de vinhetas em cada página.

A relevância dos personagens principais no argumento colocam Blake e Mortimer em igualdade de circunstâncias no que se refere a presenças nas vinhetas, com um ligeiro ascendente de Blake relativamente a Mortimer, tal como sucedera em “A Onda Septimus”. Já quanto a Olrik, dada a sua relevância do desenlace do episódio, merecia maior destaque no desenvolver do argumento, com uma presença mais frequente ao longo das várias páginas. A sua presença em apenas 14% das vinhetas não é adequada ao importante papel que desempenha.

Nos pormenores de desenho há três que quero referenciar. O circulo em torno do M  na camisola de Olrik, surge quase sempre aberto, mas também surge fechado, o que é uma incoerência. Também as cores da bandeira britânica no uniforme de Blake, na sequência, vermelho, branco, azul, branco, vermelho, merecia melhor tratamento, pois nem sempre são visíveis todas as cores nem surgem com as mesmas dimensões relativas. Finalmente, o casaco que a rainha veste na audiência no palácio, parece ter na gola algo estranho. Se por um lado aparenta não ter gola dobrada, na vinheta em que abandona a sala, esta parece surgir com uma forma inadequada ao que se vê anteriormente, não se percebendo como poderiam surgir nesta gola os elementos desenhados nas vinhetas anteriores.

Um dos maiores problemas relativos ao desenho, excluindo os anteriores que não afetam significativamente a globalidade da obra, surge com as fisionomias.

A da rainha surge com problemas de falta de semelhança com a própria, na época em que decorre a ação, e que é possível analisar com facilidade, dada a profusão de fotos que existe da sua coroação, ocorrida em 1953. Há diferença significativa entre o rosto que é proposto no desenho e o da própria rainha, sendo a personagem mais facilmente identificável pelo estilo de vestuário do que pela fisionomia. Não há também constância nos seus traços fisionómicos. Tanto surge um rosto jovial, com cerca de 30 anos, como por vezes parece ter 50.

Esta incapacidade de adequar os traços à idade da personagem, também se verifica, por vezes, com o professor Mortimer, que em algumas vinhetas parece aparentar uma idade superior àquela que teria nas restantes.

Já o rosto de Churchill parece muito melhor conseguido. Também facilmente atribuímos o desenho à personagem, sem ligar muitos aos traços. A estrutura física, o cachimbo e a alopecia descrevem facilmente o primeiro-ministro britânico da época.

Uma outra situação ocorre neste livro ainda no que concerne às fisionomias. Os autores mostram dificuldade em expressar as emoções das personagens. Apesar de o conseguirem algumas vezes, na maior parte das situações ficamos perante uma “poker face” pouco compatível com a qualidade que se pretende na continuidade gráfica desta série criada por Edgar Pierre Jacobs.

O fundo das vinhetas apresenta-se demasiadas vezes entre o verde e o um tom azulado, que o afastam ligeiramente dos episódios a que pretenderia dar continuidade “A marca amarela”, marcada por tons mais escuros, e, especialmente, “ A onda Septimus”, que assenta em tonalidades mais claras.

O cenário das vinhetas poderia ser um pouco mais enriquecido, seguindo na esteira de Jacobs, nomeadamente nas suas principias obras, mas o aspeto menos positivo, entenda-se que não quer dizer negativo, está no traçado demasiado limpo e assético, designadamente das linhas urbanísticas, mas não só. Falta a imperfeição, alguma” sujidade”, mais curvatura, que aproxime o cenário do estilo do de Jacobs. Não podemos esquecer que esta continuação da série pretende imitar o estilo do seu criador, não pretendendo fazer uma reinvenção das personagens ou do ambiente.

A sombra no desenho nem sempre é muito bem tratada pelos desenhadores. Na primeira vinheta da prancha dezasseis a face direita de Bronstein, num plano paralelo das costas dos outros dois cientistas, surge iluminada, ao contrário das costas destes, o que não é muito coerente com a posição de onde vem a luz que ilumina a cena. Também existem vinhetas onde surge a sombra, mas outras em que não há qualquer sombra, apesar da fonte de luz da cena não estar sobre as personagens, revelando alguma incoerência estilística. Existem obras em que a sombra é usada para realce de algumas personagens, mas neste caso, a presença ou ausência da sombra, não está associada a esse elemento narrativo.

A letra é legível, embora muito pequena, não criando, no entanto, dificuldades na leitura. Há muito texto, uma característica da obra de Edgar Pierre Jacobs. Não há constância na intensidade do texto, mas essa particularidade também já se notava em Jacobs, não só em cada um dos episódios, mas numa evolução que o foi levando, com o tempo, a diminuir a quantidade de palavras que usava.

O texto surge em balões de forma retangular, aparecendo múltiplas legendas: enquadradas em caixas de texto sobre as vinhetas, abaixo das vinhetas, lateralmente e também dentro das próprias vinhetas. Há, raramente, legendas sem enquadramento de uma moldura.

Existem vinhetas com símbolos cinéticos com os quais se pretendem evidenciar alguns movimentos, assim como outra simbologia, que pretende mostrar emoções, como surpresa: trações radiais envolvendo a cabeça. Surgem também elementos de pontuação ortográfica dentro das vinhetas, como representação emocional.

Uma nota final para a editora, que na contracapa continua a insistir em colocar “O Raio U” como um episódio de Blake e Mortimer. Que pretendem? Levar à compra por quem não conheça?

Não é preciso. A obra é interessante por si mesma.

Conclusão.

Quem vai à procura da continuidade de Jacobs, ou de alguns autores posteriores, ficará um pouco desiludido com este episódio, que baixa a qualidade média da série, tanto no argumento como no desenho. Pode ser interessante para um iniciado em Blake e Mortimer,  que não vá apenas em busca de uma série de ficção científica, mas para quem já conheceu todos os episódios anteriores, fica alguma deceção, ficando este livro em “mais um” que se compra para a coleção ficar completa.

Sem comentários:

Enviar um comentário