terça-feira, 22 de dezembro de 2020

Análise crítica: O neto do homem mais sábio

 



Título: O neto do homem mais sábio
Argumento: Tomás Guerrero
Desenho: Tomás Guerrero
Tradução: João Miguel Lameiras
Prefácio: Valter Hugo Mãe
Editora: Levoir
Edição: 2020
144 páginas – 124 com banda desenhada
ISBN: 978-989-68-2890-5
Preço: 10, 90 €
Dimensões: 235 mm x 308 mm

 Análise

Uma biografia em banda desenhada é sempre uma situação difícil de abordar. A tendência é cair numa sequência descritiva de factos apresentados cronologicamente, que parecem muitas vezes desajustados uns dos outros. A banda desenhada está cheia destas situações, ocorram elas em biografias apresentadas em três ou quatro pranchas, ou em trabalhos mais extensos.

Neste livro, o autor, Tomas Guerreiro, consegue afastar-se um pouco desse caminho tradicional. Apresenta uma biografia narrada a duas vozes. Duas personagens: uma que teve existência real e outra nascida nos heterónimos de Fernando Pessoa. Jerónimo Melrinho, o avô de Saramago, e Ricardo Reis, simbolizado pelo próprio poeta Fernando Pessoa. A complementar surge ainda o próprio Saramago.

Esse cruzamento torna-se feliz porque consegue manter o leitor atento, sem o colocar em pormenores biográficos que muitas vezes não passam de bisbilhotice.

Na narrativa excedentária, apenas se torna supérflua a explicação que é dada para o despedimento de Saramago. Embora o facto de ficar sem trabalho tenha sido decisivo para o surgimento do escritor reconhecido mundialmente, a tentativa de explicar o despedimento está deslocada no conjunto do texto da obra.

Neste livro as palavras são muito importantes. O texto está bem escrito e faz-nos mergulhar no ambiente dos livros de Saramago: a forma e a temática dos seus livros saltam de um modo natural para os diálogos de Jerónimo e de Ricardo Reis. Quando são necessárias surgem, bem enquadradas, as citações do próprio Saramago.

É um livro com muito texto, onde o desenho, na maior parte das situações, serve apenas de cenário aos balões, não acrescentando informação direta, ou então podendo ser interpretado como metáfora dos sentimentos que as personagens vivenciam ou que envolviam o próprio José Saramago.

Não se espere encontrar neste livro uma necessidade de acompanhar a imagem para que se lhe possa acrescentar informações que o texto não contém. Na maior parte da obra as ilustrações servem de fundo aos balões de texto, enquadrando-os e aumentando a sua dimensão poética. Mas o texto, quase sempre poderia ser lido sem que o desenho lá estivesse. Este embeleza a obra, ajuda a legibilidade, mas o fundamental está nas palavras.

O desenho é excelente, com o autor, usando um estilo quase idêntico ao de Sergio Toppi. Com a manipulação perfeita das sombras e dos traços negros, consegue transferir para o leitor as emoções que os rostos, demasiado estáticos, normalmente não traduzem. Poderemos mais uma vez estar perante uma opção, pois essa rigidez facial é comum aos retratos que se conhecem de José Saramago e de Fernando Pessoa. Acresce que numa das últimas vinhetas do livro, uma maravilhosa vinheta dupla, Tomás Guerrero não tem dificuldade em colocar expressões nas faces das personagens.

A estrutura das pranchas é variável; umas com com divisões em vinhetas definidas, mas outras, com os desenhos que pertencem a uma vinheta, por vezes sobrepostos aos da vinheta adjacente. Há páginas com uma única vinheta e outras em que a imaginação se pode espraiar, com os desenhos a ocuparem a prancha numa sequência sem divisões de molduras nem elipses.

A cor é usada de modo muito discreto. Seja na evocação da revolução do 25 de abril, nas páginas que relatam Levantado do chão ou na identificação dos restantes livros de Saramago. Há um capítulo onde a cor domina e que, curiosamente, ou ironicamente, se chama Época Cinzenta. Deixo para o leitor do livro a descoberta desse capítulo.

A leitura torna-se facilitada com a cor usada no fundo balões. Por vezes estes surgem sem que a personagem que fala seja visível, mas a tonalidade diferente atribuída a cada um dos intervenientes; Jerónimo, Melrinho, Ricardo Reis e José Saramago, permite a sua identificação Surge ainda um reduzido número de balões atribuídos a Amadeu Batel, Tomás Guerrero e Fernando Aguilera que têm fundo branco, o que também os permite distinguir.

As legendas que não sejam citações da obra de Saramago são reduzidas, servindo para localizar a ação no espaço e no tempo.

Um reparo. A edição merecia a indicação do título original.

Conclusão:

Livro interessante de se ler, em que apesar do desenho de excelente qualidade é no texto que reside o essencial. É a obra em que se consegue dar vida ficcionada a uma personagem real, que não sabia ler nem escrever, o avô de Saramago, atribuindo-lhe as palavras que efetivamente o tornam num homem sábio.

Na ausência de uma ação que prenda os sentidos do leitor, são as palavras que conduzem através das páginas e permitem descobrir, colocando na boca de outros, o que Saramago disse de si próprio e a visão que ele tinha do mundo. É toda essa orquestração de palavras que tornam este livro um exemplar que fica bem em qualquer biblioteca.

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